Matéria de capa / Grupo Bemol
GRUPO BEMOL: DESAFIOS E OPORTUNIADES NA AMAZÔNIA
Atuando numa região com muitas peculiaridades, que incluem uma logística complexa, como o transporte de produtos por mar, por rio e por terra, e o compromisso com o crescimento sustentável, a Bemol projeta para este ano uma receita aproximada de R$ 4,5 bilhões.
por Igor Lopes
O Grupo Bemol é um verdadeiro ícone do varejo na Amazônia Ocidental. Fundado em Manaus (AM) por três irmãos imigrantes marroquinos, iniciou sua jornada em 1942 como distribuidor de medicamentos, mas rapidamente se reinventou ao perceber as oportunidades trazidas pela Zona Franca de Manaus. A partir daí, a Bemol se consolidou como uma das principais referências na venda de eletroeletrônicos, móveis e soluções diversificadas que atendem às necessidades da região.
Marcelo Forma, CFO e diretor comercial do Grupo Bemol, fala, nesta entrevista exclusiva para Eletrolar News, sobre como a logística é uma questão delicada no Norte do País. É preciso driblar barreiras e desenvolver soluções para se adaptar às particularidades do mercado da Amazônia, mantendo uma conexão sólida com a comunidade local e buscando inovações que respondam às demandas dos consumidores e promovam o desenvolvimento sustentável.
“A Amazônia está no centro do mundo. Todas as questões relacionadas à sustentabilidade são discutidas o tempo todo para olharmos qual o futuro do nosso planeta. Nossa ligação é muito forte com essa temática e ela passa por diversas ações.”
Como se deu a ligação do Grupo Bemol com a comunidade da Amazônia?
MARCELO FORMA – A Amazônia Ocidental compreende quatro estados: Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre. Isso é, mais ou menos, a metade da Amazônia. Em termos de Brasil, estamos falando de 26% do território, mas com apenas 4% da população. São 8 milhões de pessoas. E se falarmos do PIB, representa apenas 2,5%. É um cantinho do Brasil com densidade populacional muito baixa. A nossa estratégia é, de fato, ocupar e ficar nichados nesses quatro estados. A Bemol tem como seu principal negócio a parte de eletromóveis, mas ao longo dos últimos anos, até pela questão do apocalipse do varejo, tem feito uma série de inovações e diversificações, pautadas na sua estratégia de criar um ecossistema para participar ativamente da vida do cliente todos os dias.
De que forma o grupo enfrenta os desafios logísticos para entrega de produtos?
MF – Temos vivido o segundo ano de uma seca muito, muito forte. É um recorde. Foi a maior vazante que já tivemos aqui, o que deixa muitos municípios isolados. Então, temos dois grandes efeitos da seca, do ponto de vista operacional. O primeiro é o inbound. Cerca de 35% do que vendemos, compramos na Zona Franca de Manaus. Os outros 65% vêm, principalmente, das Regiões Sul e Sudeste. Alguma coisa vem do Nordeste, e fazemos toda essa logística através de cabotagem, porque não há estrada chegando das outras regiões até Manaus. Não dá para voar tudo, principalmente quando falamos de linha branca ou de móveis. Temos centros de consolidação em Itajaí (SC), em Santos (SP), em Pecém (CE) e, toda semana, há navio passando neles coletando containers e trazendo para cá. A Bemol, provavelmente, é hoje a empresa que mais traz produtos para Manaus. Grande parte do trajeto é marítimo, mas em algum momento há a transição fluvial. E aí, quando tem a seca, começam as restrições. A questão do calado não é suficiente para os navios grandes, armadores, e essas embarcações começam a deixar de navegar. Nesse momento, é preciso buscar modelos alternativos.
Modelos de que tipo?
MF – Neste ano, avançamos bem na parte da infraestrutura portuária. Agora, os navios armadores chegam a esse porto e fazem um transbordo para balsas que têm um calado muito menor e conseguem fazer o transporte. Achamos uma solução, mas isso tudo aqui, no final das contas, é mais caro e há uma taxa seca que os grandes armadores acabam cobrando de nós. Para dar uma ideia, o valor do frete de um container sobe, nessa época, 70%. Isso aqui é só no inbound. Quando se fala do outbound, temos duas grandes operações. Uma, naturalmente, é o abastecimento de loja. São 62 municípios no Amazonas. Há municípios em que levamos duas semanas de barco para chegar com a mercadoria. Alguns municípios atendemos só pelo e-commerce. Aqui na Amazônia não há frota de barco dedicada para fazer transporte de carga. Temos alguns barcos regionais que fazem o trajeto no dia a dia para levar passageiros e utilizam a estrutura do porão para levar produtos. Hoje, já temos o espaço contratado dentro dessas embarcações. E, quando vamos para o detalhe, há cada vez mais complicômetros.
Isso é a grande peculiaridade da sua região, certo?
MF – Pois é… Tem o barco, mas tem hora em que você também tem o transporte rodofluvial. Às vezes, essa balsa não tem um porto para tirar as coisas de maneira estruturada. Então, abrimos o caminhão, retiramos os produtos e, muitas vezes, precisamos de pessoas para fazer o serviço. É uma logística muito complexa. E mesmo tendo 61 municípios no interior do Amazonas, não é que a população em cada um está concentrada. Há comunidades em volta desses municípios. Às vezes, você chega a esse município e precisa colocar a geladeira numa canoa para levá-la até a comunidade daquele cliente. Com a seca, tudo isso se torna um desafio ainda maior. Para se ter ideia, há cidade em que a distância para chegar à água hoje, por causa da seca, é de quatro quilômetros. Tínhamos um SLA de entrega, eventualmente, de 10, 12 dias. Na seca, temos que mudar para 30. Realmente, é uma tarefa bastante complexa.
“O crédito é uma grande fortaleza nossa. Dos 8 milhões de habitantes aqui na região, temos um cadastro de 4 milhões. É metade da população local, praticamente um por residência. E, hoje, 85% das vendas que fazemos são no crediário próprio.”
O cliente não reclama desse aumento no prazo?
MF – Não existe modelo alternativo, não é uma questão nem de tecnologia. A seca dura um período crítico de três meses. Fora dessa época, nós conseguimos ter um atendimento com nível de qualidade muito melhor. O cliente compreende até porque ele vive essa realidade no dia a dia. Ele até tenta se planejar para não ter que fazer compras de necessidades que já sabe que vai ter nesse período.
Nas lojas da Bemol, qual é representatividade dos eletroeletrônicos?
MF – A linha branca, hoje, representa 30% das vendas. Celular representa 23%. Vídeo, 8%. Se pegarmos todas as categorias de eletros, devemos ficar na casa dos 70%.
Como a tecnologia é usada na evolução do processo de trabalho no grupo?
MF – Do ponto de vista de canal, o e-commerce é fundamental dentro da nossa operação. Antes da pandemia, vendíamos 2% por meio do nosso canal digital. Ele era muito pouco representativo. Hoje, já estamos em 17%, sendo que o volume de vendas também aumentou. Dobramos o tamanho da companhia em seis anos e multiplicamos por oito a participação do canal digital, o que é muito relevante. O canal digital tem permitido trazermos uma série de inovações. Primeiro, porque há municípios no interior profundo da Amazônia onde não temos loja. Só para dar uma ideia, são 4 milhões de habitantes no Amazonas, 2 milhões e pouquinho aqui em Manaus. O restante está dividido nesses outros 61 municípios. São quatro ou cinco municípios que têm em torno de 100, 120 mil habitantes, mas a grande maioria está abaixo de 50 mil habitantes, vários com 10 mil habitantes.
Acaba se tornando inviável ter loja física em todos os municípios?
MF – Pois é… Então, começamos a estruturar o que chamamos de e-commerce caboclo, que é trazer um pouco dessa regionalização e das dificuldades para poder desenvolver algo que atendesse, de fato, a realidade local. Tínhamos lojas, por exemplo, nas quatro capitais dos quatro estados em que atuamos e duas cidades do interior do Amazonas. Hoje, temos lojas em 22 cidades. Abrimos, há três anos, loja em cidades com 100 mil habitantes como Parintins, que ficou superfamosa com o festival. Está indo superbem, mas traz uma questão logística complicadíssima. Temos outra, em Manaquiri, com 15 mil habitantes. E aí perguntam: “por que você abriu uma loja num lugar pequeno assim?” A resposta está na proximidade, eu consigo ter uma logística um pouco mais facilitada. Desenvolvemos um modelo que chamamos de loja híbrida. Ela tem cerca de 400 m², sendo 250 m² de varejo e 150 de farma. Explico: o nosso padrão de loja típico, que sempre existiu, tem espaço de 2.500 m² de área de venda, em Manaus. Quando vou para o interior, não posso abrir uma loja dessas. Esse modelo é interessante porque consigo, de um lado, ter atendimento local para oferecer produtos na hora para o cliente, e ele também consegue comprar pelo e-commerce. Além disso, no e-commerce, temos procurado desenvolver o que chamamos de marketplace regional. Incentivamos empreendedores locais que querem vender algum tipo de produto na nossa plataforma. Ela é extremamente relevante na região. No total, temos 38 lojas físicas, uma online, 48 farmácias, três mercados, cinco centros de distribuição e a Clínica Bemol Saúde.
O crédito também é uma questão importante para a Bemol?
MF – O crédito é uma grande fortaleza nossa. Dos 8 milhões de habitantes aqui na região, temos um cadastro de 4 milhões. É metade da população local, praticamente um por residência. Hoje, 85% das vendas que fazemos são no crediário próprio. Apenas 8% são feitas com cartão de crédito. Desenvolvemos uma relação de confiança com os clientes por incluí-los no sistema financeiro, porque grande parte deles não tinha acesso a crédito. Dessa forma, criamos uma relação de longuíssimo prazo e de fidelidade. Por isso, o crédito hoje é um combustível muito importante para nós. Isso se torna também um grande diferencial competitivo.
“Focamos na inovação que permeia nossos processos, buscando a otimização operacional através da aplicação de IA generativa. Esse esforço coletivo reforça nosso papel de liderança no mercado da Amazônia Ocidental.”
E quanto ao faturamento? Qual é a projeção para 2024?
MF – Neste ano, a Bemol projeta uma receita aproximada de R$ 4,5 bilhões, resultado de um trabalho conjunto e integrado entre diversas áreas da empresa. Esse desempenho reflete nosso compromisso com o crescimento sustentável, impulsionado por investimentos estratégicos em maior estrutura logística, com a inauguração de mais um centro de distribuição, uma loja no interior do Amazonas, quatro farmácias e ampliação de nossos serviços financeiros. Também focamos na inovação, que permeia nossos processos, buscando a otimização operacional através da aplicação de IA generativa. Esse esforço coletivo reforça nosso papel de liderança no mercado da Amazônia Ocidental.
Como a Bemol está implementando práticas de sustentabilidade na região?
MF – A Amazônia está no centro do mundo. Todas as questões relacionadas à sustentabilidade são discutidas o tempo todo para olharmos qual o futuro do nosso planeta. Nossa ligação é muito forte com essa temática e ela passa por diversas ações. Temos uma tradição muito grande em relação à governança. Nosso conselho de administração é superbem estruturado. Somos auditados por Big Fours já há diversos anos. Todas as práticas ligadas à governança funcionam muito bem na Bemol, o que nos ajuda frente ao mercado e às instituições financeiras. Em meio ambiente, temos primeiro a questão energética – 100% da energia que consumimos é de fontes renováveis. Compramos muita energia no mercado livre com a condição de que ela seja sempre de uma fonte renovável. Não conseguimos ligar todas as nossas instalações no mercado livre. Então, temos, hoje, três plantas solares somando 10 mil painéis. Elas produzem energia com duas finalidades. Uma é alimentar as nossas lojas que não estão ligadas hoje no mercado livre de energia. E parte nós disponibilizamos para clientes, como se fosse um Spotify: eles alugam as placas, e a energia gerada ali eu credito na conta deles e com custo muito mais baixo do que seria se fornecido pela companhia de energia elétrica. Ele acaba tendo uma economia em torno de 20%. Temos, também, uma frota própria de 200 caminhões e começamos a fazer o teste com seis deles elétricos. Além disso, todo o carbono que emitimos através da nossa logística é compensado por um projeto desenvolvido em conjunto com um parceiro. Pegamos uma área degradada e estamos reflorestando. Com isso, há o lado de tornar essa terra produtiva e usar a mão de obra de famílias ribeirinhas. Culturas alimentícias como banana, cacau, açaí são plantadas, e há uma ciência e uma técnica para fazer isso intercalado com árvores de madeira, que podem ser utilizadas para a indústria moveleira de maneira certificada. Isso gera dois tipos de valor: um é a venda de toda essa produção e outro são os créditos de carbono que também são gerados através dessa área recuperada. No social, o primeiro exemplo é o empoderamento feminino. A taxa feminina de empreendedoras na média do Brasil é pouco abaixo de 40%. No Amazonas, esse índice é muito menor. Então, entendemos que deveríamos instrumentalizar as empreendedoras locais para que elas, de fato, conseguissem ter sucesso nos seus negócios. Temos dois programas nesse sentido. Um deles é o “Empreende, Mana”. Fizemos uma seleção com cerca de 400 clientes e chegamos a 40 no final. São pessoas que foram eleitas para participar de uma mentoria com vários temas: financeiro, marketing, comercial. Os professores são especialistas que trabalham na nossa comunidade ou profissionais gestores da Bemol. Elas vão desenvolvendo seus projetos, e nós premiamos com capital semente. E depois continuamos fazendo o monitoramento dessas empreendedoras para termos certeza de que elas estão evoluindo nos seus projetos. A primeira versão fez tanto sucesso que repetimos uma segunda vez.
Você é bastante envolvido em questões sociais e investidor-anjo em muitas startups que visam a soluções para o desenvolvimento econômico sustentável da Amazônia. Conte alguns casos de sucesso.
MF – Temos alguns investimentos que são, naturalmente, através da Bemol. Mas, como pessoa física, eu tenho entrado em vários também. Por exemplo, há empresas que estão fazendo superfoods com base em produtos e ingredientes amazônicos. O mundo está cada vez mais buscando esse tipo de alimentação. É o caso da “MATA”, e está indo superbem, vende mais de um milhão de reais por mês. Estou de olho em soluções que buscam a bioeconomia: como consigo usar a força da floresta para criar algum produto que pode ajudar as pessoas a melhorar a qualidade de vida. Outra investida é o desenvolvimento de balas veganas de goma, com ingredientes da floresta, que não têm lactose e nenhum tipo de química. Tem uma empresa que chama “Viva Lá”, de turismo consciente e comunitário, que faz expedições para explorar as riquezas da Amazônia, por exemplo para o Pico da Neblina. Há outra, chamada “Remata”. Temos nossa fazenda onde começamos a fazer esse sistema agroflorestal (SAF), no qual acreditamos bastante, porque a floresta não vai ficar de pé se você não trouxer prosperidade para o ribeirinho. Há startups investidas que buscam elementos da floresta para as indústrias cosmética e médica. E há um projeto superlegal aqui, que não sei se vai dar certo, mas eu adoro. Você sabe o que é um ecranoplano?
Não tenho nem ideia.
MF – O ecranoplano surgiu na época da Guerra Fria. É um barco que voa com o que a gente chama de efeito solo, muito próximo à lâmina d’água, para não estar no alcance dos radares, e tem uma propriedade bem interessante: o consumo de combustível é muito mais baixo do que se ele voasse. Ele não é tratado como um avião, mas como um barco. E a ANAC é muito complexa, a Marinha é mais fácil. Então, queremos fazer um barco voador para deslocamentos sobre a lâmina dos rios no Amazonas. Resolve-se de um lado o problema da seca e, além disso, é um transporte muito interessante, porque ele anda a 150 km por hora. Isso muda a nossa questão logística.
Quais são as suas expectativas para o futuro do varejo na Amazônia?
MF – Os grandes marketplaces são os nossos maiores concorrentes, e muitos deles têm bolso infinito. Quando falei que abrimos farmácia, foi para trazer recorrência. Quando vendo só o eletroeletrônico, vejo o cliente três vezes por ano. Hoje, com a farmácia, eu o vejo oito vezes. E estamos fazendo agora o empréstimo com garantia imobiliária. É o famoso Home Equity, que aqui na Amazônia é um desafio, porque toda a questão fiduciária de regulamentação imobiliária é complexa. Mesmo assim, estamos indo bem. É por isso que eu falo do ecossistema. Fazer a região se tornar mais produtiva dará oportunidade de mais empreendedores irem bem. Isso fomenta a economia, e rentabilizamos melhor a operação. Tudo isso aqui está ancorado na conta digital, que tem uma agência que é a nossa loja. Assim, o cliente pode depositar e sacar no caixa da Bemol, sete dias por semana, na hora que ele quiser. Numa cidade no interior do Amazonas isso se torna muito mais relevante, porque lá não há oferta de agências com caixa eletrônico como em Manaus. Tudo isso vai criando um ecossistema para prover valor ao nosso cliente. Estamos cada vez mais seguindo nessa direção.
Fonte: Revista Eletrolar News – Edição #163