Inteligência Artificial: 10 PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE O MARCO REGULATÓRIO DA IA NO BRASIL
Objetivo do decálogo lançado pela FecomercioSP visa ao debate de como conciliar inovações disruptivas com ética e crescimento econômico e social de longo prazo.
Com a democratização da inteligência artificial (IA) e o impacto que isso vem causando, cresce, no mundo inteiro, o debate sobre sua regularização. E com várias vertentes: na União Europeia, a proposta é de um marco mais denso, que trabalha quais são os critérios de governança corporativa em cima da IA; nos Estados Unidos, há orientações éticas e responsáveis, especificando qual tipo de governança deve-se adotar; no Brasil, o projeto de lei de 2021, aprovado pela Câmara, vai para discussão no Senado e tende a seguir a tendência da UE.
“Queremos ponderar sobre a legislação da IA, como proteger direitos e garantias fundamentais e, ao mesmo tempo, não impedir a evolução tecnológica. A norma precisa ser flexível e adaptável. No caso do segmento de eletros, as empresas que desenvolvem a IA fora do Brasil talvez não queiram fazer o mesmo no País. É preciso elevar o nível de maturidade da discussão”, diz Rony Vainzof, consultor em proteção de dados e autor do decálogo junto com Andriei Gutierrez, presidente do Conselho de Economia Digital, ambos da FecomercioSP.
PONTOS PARA CONSTRUIR UM FUTURO ALGORÍTMICO SUSTENTÁVEL
1 – REGULAR O USO E NÃO A TECNOLOGIA – Assim como a máquina a vapor, a eletricidade e a internet, a inteligência artificial (IA) é uma tecnologia de propósito geral, que está em pleno e constante desenvolvimento. É preciso extrema cautela ao regular tecnologias para que a norma seja suficientemente flexível e adaptável às suas rápidas mudanças, permitindo experimentação, inovação e evolução contínua dos sistemas de IA. Notem: em meio ao debate global sobre a regulação da IA, já fomos introduzidos em uma nova era, a da IA generativa. Assim, é preciso adotar uma abordagem principiológica, a exemplo do Marco Civil da Internet (MCI), e menos prescritiva, a exemplo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que tutela não uma tecnologia, mas, muito bem, o direito e garantia fundamental da proteção de dados pessoais. Objetos distintos demandam regulações distintas para que sejam mais eficientes na garantia de direitos e na segurança jurídica para a inovação.
- – AVALIAR A APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO EM VIGOR E A COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS CONSTITUÍDOS – Como a IA é uma tecnologia de propósito geral, de acordo com o seu uso serão aplicáveis determinadas legislações já existentes, como a LGPD, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Código Civil, a Lei do Cadastro Positivo e o Marco Civil da Internet, além da própria Constituição Federal e de regulações setoriais do mercado. Isto é, se já há leis aplicáveis tutelando direitos e garantias individuais, que nem sequer foram estressadas para a IA, devemos ter um modelo de governança ágil, que não prejudique oportunidades de investimento e não impeça a inovação tecnológica, a exemplo de países como Reino Unido, Japão, Austrália e Singapura.
- – OBSERVAR AS NORMAS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL EXISTENTES – O Brasil já conta com amplo, robusto e consolidado regime de responsabilidade civil, que está posto nas mais diversas legislações, a exemplo do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e da LGPD. Essas normas regulam e protegem direitos individuais e coletivos no caso de danos oriundos de sistemas de IA, de acordo com o seu uso. Seria temerário um novo regime de responsabilidade civil exclusivo para IA, diante do risco de desestímulo ao desenvolvimento da IA no Brasil e/ou acesso à tecnologia de ponta produzida no exterior.
- – OBEDECER AO REGIME ATUAL DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS – De acordo com o uso da IA, já existem sanções administrativas a serem aplicadas pelos órgãos setoriais competentes, como no Código de Defesa do Consumidor, na LGPD, no Marco Civil da Internet, entre outras normas. Isto é, qualquer novo regime de sanções criaria um temerário bis in idem. Por exemplo, em que pesem os importantes debates sobre a existência de melhores práticas para a mitigação de vieses discriminatórios por softwares ou sistemas automatizados, lembra-se que a LGPD tem como princípio a não discriminação, e a ANPD já tem poderes regulatório e sancionatório para a promoção, o estímulo e a adoção das melhores práticas, assim como para a salvaguarda de direitos fundamentais que envolvam dados pessoais.
- – ABORDAGEM BASEADA EM RISCO, PRINCIPIOLÓGICA E CONTEXTUAL – O ponto-chave da regulação deve se voltar à modelação de níveis escalonados de riscos e à criação de salvaguardas proporcionais para a sua mitigação, a depender da aplicação contextual da IA. É pertinente que, no nível legal, sejam traçados os parâmetros gerais de risco para que a sua definição, no âmbito normativo, se dê de maneira contextual, ponderando o risco potencial e as medidas de mitigação disponíveis no momento da regulação. A evolução da IA tem vindo acompanhada, também, da evolução e do surgimento de medidas técnicas e tecnológicas para mitigação de riscos. Por isso, a efetividade do Marco Legal da IA para resguardar direitos em equilíbrio com o estímulo à inovação depende do entendimento e da observância desse elemento primordial. Propõe-se, assim, que a norma traga critérios para avaliação do risco, mas que sirvam de diretrizes para a sua utilização pelos diversos setores da economia. A lógica é: o risco não deve vir chancelado na legislação. Quem avalia o risco é o setor de uso da IA conforme o amadurecimento da tecnologia no Brasil e a identificação mais precisa dos riscos envolvidos em cada atividade ou aplicação no seu contexto. Quem desenvolve ou aplica a IA poderá ser cobrado, fiscalizado, sancionado e responsabilizado no caso de avaliação equivocada do risco e ausência do dever de cautela, por meio do instituto da autorregulação regulada.
- – SOFT LAW COMBINADO COM FLEXIBILIDADE REGULATÓRIA – Privilegiar balizas gerais de governança, como orientações para a utilização ética e responsável, deixando a análise fática para ser feita caso a caso de acordo com o risco concreto e com o entendimento dos órgãos reguladores setoriais. A escolha da estratégia regulatória deve ser consistente com o comportamento apresentado pelos agentes regulados e permanentemente adaptada e otimizada, ou seja, uma regulação responsiva. O sucesso da regulação de um objeto em constante transformação depende da combinação de soft law com flexibilidade regulatória, para que reguladores e regulados possam avançar juntos em medidas e ações de mitigação de riscos.
7 – PROMOVER A AUTORREGULAÇÃO REGULADA – Reconhecendo a dinâmica de evolução constante da tecnologia, a inovação e a diversidade de contextos para cada setor de aplicação, apoiamos a adoção de soluções de corregulação ou “autorregulação regulada”, provendo segurança jurídica e proteção de direitos fundamentais. A norma traz parâmetros mínimos de governança no desenvolvimento, emprego e monitoramento dos sistemas de IA, capazes de balizar o dever de cuidado a ser tomado. Esses parâmetros mínimos orientarão instituições de autorregulação no desenvolvimento de códigos de conduta específicos para diferentes setores de atividade econômica e de possível emprego da tecnologia, podendo ser reconhecidos posteriormente por autoridades públicas setoriais competentes.
- – EMPREGAR REGULAÇÃO DESCENTRALIZADA COM INTEROPERABILIDADE REGULATÓRIA – Um modelo de regulação para a IA baseada em risco, principiológica e contextual, difere dos modelos propostos baseados em uma agência regulatória específica para a IA. Entendemos que, além de não se mostrar efetivo, o modelo regulatório baseado em uma agência centralizada pode trazer mais burocracia sem garantir a necessária proteção de direitos fundamentais. Além disso, seria uma irresponsabilidade fiscal propor a criação de mais uma agência governamental sem ter a ampla certeza de sua necessidade e eficácia. A sociedade brasileira vê, há anos, a tentativa de criação e estruturação da ANPD, ainda sem os recursos necessários para a sua importante missão. Por outro lado, defendemos que haja uma instância governamental centralizada para a promoção da interoperabilidade regulatória entre as diferentes autoridades competentes: compartilhamento de nomenclaturas, padrões, melhores práticas e harmonização da autorregulação regulada entre diferentes setores. Além disso, defendemos também a criação de uma instância consultiva com a participação do setor privado e da sociedade, multissetorial.
- – INCENTIVAR A INOVAÇÃO RESPONSÁVEL – O sistema proposto deve prever mecanismos de benefícios aos agentes virtuosos. Isto é, aqueles que utilizem os sistemas de IA de acordo com os preceitos éticos e regulatórios estabelecidos e, ainda, atuem preventivamente para evitar qualquer tipo de utilização da sua tecnologia de forma enviesada, discriminatória e inapropriada. Visando à construção de um ecossistema que potencialize iniciativas e estimule a concorrência, sugerimos que a norma promova programas e oportunidades de desenvolvimento para pequenas empresas e startups, inclusive mediante a criação de ambientes controlados de inovação, com sandboxes e hubs regulatórios.
10 – ADOTAR A PADRONIZAÇÃO GLOBAL – Uma das principais características da economia digital é que suas cadeias globais de valor são inerentemente dinâmicas. É de grande relevância que o Brasil tenha participação ativa e voz nos fóruns internacionais para a discussão das melhores práticas e de uma governança global da IA, em especial para que tenhamos convergência em termos de padrões e de regulações. A competitividade das organizações brasileiras, assim como o acesso a novas tecnologias globais por elas, dependerá, cada vez mais, de uma ativa participação brasileira na construção dessas políticas globais. Em especial, recomendamos a participação nas iniciativas lideradas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), assim como aquelas ligadas ao Global Partnership on AI (GPAI), ao G7 e à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Fonte: Revista Eletrolar News – Edição #155